Por Guilherme Bonfim – Advogado e Consultor Jurídico do Escritório Guilherme Bonfim Advocacia
1. Introdução
No universo jurídico, a demarcação de imóveis é uma ferramenta essencial para garantir a segurança jurídica dos direitos de propriedade. Muitas vezes, esse processo começa de forma pacífica, sob o manto da jurisdição voluntária, onde não há disputa entre as partes. O objetivo inicial é simples: ajustar os limites geográficos de um imóvel e obter a chancela judicial para regularizar registros imobiliários.
No entanto, a aparente simplicidade desse procedimento pode ser drasticamente alterada quando terceiros – como herdeiros de antigos proprietários – emergem para contestar direitos sobre o bem. Nesse momento, o que parecia um mero trâmite burocrático se converte em um conflito judicial complexo, envolvendo questões como posse, propriedade e até suspeitas de fraude.
Este artigo explora como essa transição ocorre, destacando os mecanismos legais que permitem a participação de herdeiros e a transformação do processo em uma disputa contenciosa.
2. Conceito e Natureza da Ação Demarcatória
A ação demarcatória, regulamentada pelos arts. 569 a 598 do Código de Processo Civil (CPC), tem como objetivo principal definir ou corrigir os limites de um imóvel. Essa definição é crucial para garantir a segurança jurídica dos envolvidos, evitando futuros conflitos sobre a área e as confrontações do terreno.
Inicialmente, a ação pode ser proposta como um procedimento de jurisdição voluntária, especialmente quando não há divergência entre os confrontantes. Nesses casos, o processo é mais ágil e menos burocrático, pois não há disputa sobre a titularidade ou a posse do imóvel.
No entanto, a natureza da ação muda radicalmente quando surge uma controvérsia. O CPC/2015 é claro: se houver resistência substancial, aplicam-se as regras do procedimento comum. Isso significa que o caso passa a admitir contestação, produção de provas e até reconvenção, características típicas de um litígio.
3. Conversão do Procedimento em Contencioso
A transformação da jurisdição voluntária em contenciosa ocorre quando terceiros apresentam alegações que transcendem a simples demarcação. Essas alegações podem envolver:
- Disputa de titularidade: herdeiros alegam que o imóvel pertence ao espólio do falecido;
- Questões de posse: terceiros afirmam ter direito à posse do imóvel;
- Fraude à legítima: herdeiros questionam a validade de uma venda realizada pelo falecido, alegando que o negócio foi feito em prejuízo de sua parte hereditária.
Nesses casos, tribunais como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhecem a necessidade de converter o processo em contencioso, assegurando o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Exemplo prático: Imagine que o titular do registro de um imóvel ajuíza uma ação de demarcação para ajustar os limites do terreno. No entanto, herdeiros de um antigo proprietário aparecem alegando que a venda do imóvel foi fraudulenta e, portanto, nula. Nesse cenário, a discussão deixa de ser técnica e passa a envolver a análise de documentos, testemunhas e perícias.
4. Intervenção de Terceiros e Legitimidade dos Herdeiros
4.1 Legitimidade para Intervir
Herdeiros têm interesse direto se o imóvel integra o patrimônio do falecido. Para participar do processo, precisam comprovar:
- Vínculo sucessório: por meio de certidões de óbito, filiação ou inventário;
- Impacto concreto da demarcação: demonstrar como a ação afeta seus direitos, como a redução da legítima.
A intervenção pode ocorrer por meio de:
- Oposição: alegar direitos sobre o bem;
- Assistência: apoiar uma das partes para proteger interesses;
- Chamamento ao processo: incluir outros herdeiros ou o espólio.
4.2 Estratégias para Proteger Direitos
- Pedido de nulidade: se houver indícios de negócio jurídico fraudulento;
- Suspensão do processo: caso dependa de decisão prévia em inventário;
- Inclusão do espólio: para garantir que a sentença atinja todos os herdeiros.
5. Reconvenção e Pedido Dúplice
Em processos contenciosos, a reconvenção (art. 343 do CPC) permite que o réu ou terceiro faça um pedido contra o autor. Na prática, herdeiros podem:
- Exigir a anulação de uma venda considerada ilegítima;
- Reivindicar a posse do imóvel com base em direitos hereditários;
- Questionar a valididade de documentos apresentados na ação original.
Essa ferramenta evita a multiplicação de processos e concentra a discussão em um único juízo.
Desse modo, se os herdeiros pretendem, por exemplo, anular a alienação feita em vida pelo falecido, ou reivindicar o imóvel em razão de terem sido prejudicados em sua legítima, podem apresentar reconvenção na própria ação demarcatória que se converteu em contenciosa, contanto que observem os prazos e requisitos legais (art. 343 do CPC).
6. Citação do Espólio e Formação do Polo Passivo
Outro ponto de destaque é a necessidade de citação do espólio, caso ainda não haja inventário concluído, ou do(a) inventariante, se o processo de inventário já estiver em curso. A falta de citação do sujeito que efetivamente representa o acervo do falecido pode acarretar:
- Nulidade do processo, caso seja constatado que o espólio era indispensável à formação de um litisconsórcio necessário;
- Ineficiência da sentença quanto a eventuais direitos sobre o imóvel, se os herdeiros não tiverem participado do contraditório.
Além disso, se o regime de bens do autor ou de qualquer das partes assim exigir (por exemplo, comunhão parcial ou universal de bens), é comum que o cônjuge seja chamado a integrar a lide, com base no art. 73 do CPC.
7. Conclusão: Da Burocracia ao Litígio
A princípio, ações de demarcação ou retificação de registro imobiliário podem tramitar na esfera de jurisdição voluntária sem grandes contestações. Contudo, basta a manifestação de terceiros, especialmente herdeiros que questionam a validade ou a autenticidade do negócio envolvendo o imóvel, para que ocorra a conversão do procedimento em contencioso.
Esse fenômeno processual autoriza a ampla aplicação das regras do procedimento comum, incluindo a defesa de mérito, a possibilidade de oferecimento de reconvenção, a citação de todos os interessados (espólio, cônjuge, confrontantes) e a produção de provas típicas de uma ação contenciosa.
Portanto, é fundamental que operadores do Direito fiquem atentos aos requisitos de legitimidade de herdeiros e à forma de participação do espólio, garantindo que todos os envolvidos sejam adequadamente citados para que a sentença produza efeitos regulares e se evite futura alegação de nulidade ou falta de eficácia.
8. Referências
- CPC/2015 (arts. 73, 343, 569-598);
- CF/1988, art. 5º, XXX;
- Jurisprudência do STJ (REsp 1.453.193/DF; AgInt no AREsp 950.790/SP);
- Decisão do TJ-BA (APL 0501117-96.2017.8.05.0150).